EC nº 111, câmaras e consultas populares: ‘árvore de Natal’ ou aprimoramento da democracia?

*Victor Marcel Pinheiro (artigo)

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A Emenda Constitucional nº 111/2021, entre outras modificações, inseriu os §§ 12 e 13 no artigo 14 da Constituição:

“§ 12. Serão realizadas concomitantemente às eleições municipais as consultas populares sobre questões locais aprovadas pelas Câmaras Municipais e encaminhadas à Justiça Eleitoral até 90 (noventa) dias antes da data das eleições, observados os limites operacionais relativos ao número de quesitos” e “§ 13. As manifestações favoráveis e contrárias às questões submetidas às consultas populares nos termos do § 12 ocorrerão durante as campanhas eleitorais, sem a utilização de propaganda gratuita no rádio e na televisão.”

A literatura sobre previsões constitucionais a respeito de mecanismos diretos de participação social no exercício do poder político apresenta pelo menos duas hipóteses em relação a suas consequências práticas [1].

De um lado, elas podem ser ter efeitos apenas decorativos, servindo como “árvores de Natal” que pouco agregam em termos de efetiva participação democrática. De outro lado, há visões de que podem efetivamente aprimorar a democracia, estimulando o debate público e aproximando as preferências de representantes e representados.

O presente texto, portanto, tem por objetivo explorar o significado das inovações da Emenda Constitucional nº 111/2021 para avaliar como elas podem contribuir com o aprimoramento da democracia brasileira.

Participação social

Como se sabe, a Constituição de 1988 deu passo decisivo no fortalecimento dos mecanismos de participação social no exercício do poder político. Para além dos mecanismos da inciativa popular das leis, plebiscitos e referendos previstos no artigo 14 da Constituição, já há entendimento, inclusive no STF, de que ela alberga diversos outros instrumentos de participação social [2].

Deve, portanto, ser reconhecida a existência um princípio constitucional de participação social nos processos de exercício do poder político, concretizado por diversas regras constitucionais, legais, regulamentares e regimentais das Casas Legislativas.

A Emenda Constitucional nº 111/2021 é mais um passo nessa direção. Ela foi fruto da PEC nº 125/2011, que teve sua tramitação iniciada na Câmara dos Deputados. Originalmente, a PEC tinha objeto mais restrito e tratava apenas da vedação da realização de eleições em datas próximas a feriados.

Durante sua tramitação, houve ampliação de seu objeto, inclusive para inserção das consultas populares municipais — plebiscitos e referendos — acima destacadas. Nos termos do relatório da deputada Renata Abreu apresentado à Comissão Especial que apreciou a PEC, havia a percepção de que deveria haver

“o fortalecimento dos mecanismos de participação da sociedade” e a proposta, “como norma programática, que as Câmaras Municipais realizem, sempre que possível, consultas populares concomitantemente às eleições. Além de não gerar custos financeiros adicionais, o acréscimo de questões a serem submetidas ao povo não dificultará e nem retardará o procedimento de votação, já que nessas eleições vota-se em apenas dois cargos eletivos.” [3]

Não houve maiores debates ou análises específicas durante a tramitação da matéria sobre esse ponto tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado.

Para o ano de 2024, o Tribunal Superior Eleitoral divulgou em seu site, a informação de que, nos termos dessa inovação constitucional, as Câmaras Municipais poderão submeter questões locais à Justiça Eleitoral para que constem das urnas no dia das eleições [4].

No calendário eleitoral de 2024 (Resolução TSE nº 23.738/2024), não há previsão expressa dessa data como fazendo parte do processo eleitoral, embora a Resolução TSE nº 23.736/2024 (que dispõe sobre os atos gerais do processo eleitoral para as eleições municipais de 2024), em seu artigo 3º, preveja a realização das consultas.

De todo modo, a questão permanece sendo regida pela Lei nº 9.709/1998 e pela Resolução do TSE nº 23.385/2012. Interpretadas à luz da Emenda Constitucional nº 111/2021, as principais regras são que as consultas populares sobre questões locais serão convocadas por decisão das câmaras municipais nos termos das leis orgânicas municipais, sendo comunicadas com 90 dias ou mais de antecedência à Justiça Eleitoral.

Deverá haver o registro de frentes que defenderão linhas divergentes em relação ao tema da consulta, sendo presididas por um membro do Poder Legislativo municipal.

Admite-se a propaganda eleitoral durante o período de campanha eleitoral e não poderá ser utilizado o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio ou televisão e deverá haver, devendo haver abertura de conta específica para arrecadação e gasto de recursos, com limites fixados pelos Tribunais Regionais Eleitorais com base na média de gastos da última eleição majoritária, e prestação de contas.

O resultado é definido por maioria simples dos votantes.

Diante de tal cenário, pode-se esperar que as consultas populares em 2024 serão árvores de Natal decorativas ou mecanismos efetivos de aprimoramento da democracia brasileira?

Sabe-se que a cultura política brasileira não é permeada de muitos exemplos da utilização desses mecanismos. Já há algum tempo Paulo Bonavides criticava a “república de medidas provisórias” e a virtual inoperância dos mecanismos de participação social da Constituição [5].

Nesse sentido, Volgane Carvalho, ao fazer levantamento sobre os referendos e plebiscitos ocorridos no Brasil até 2019, aponta que eles foram poucos e praticamente restritos a questões de divisão política de Estado e municípios [6].

Não obstante, há experiências interessantes em nível estadual e municipal de um maior engajamento da sociedade no exercício do poder político. Uma das referências internacionais sobre participação social no processo de tomada de decisão, refere-se ao orçamento participativo com a experiência do Município de Porto Alegre em 1989 e que se espalhou para outros entes federativos [7].

Após a decisão do STF no RE 626.946 (Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 13/10/2020), em que se fixou a seguinte tese: “Surge constitucional lei de iniciativa parlamentar a criar conselho de representantes da sociedade civil, integrante da estrutura do Poder Legislativo, com atribuição de acompanhar ações do Executivo”, também surgem novos exemplos da criação de conselhos de representantes vinculados às Câmara Municipais, com tarefas de auxiliar o Poder Legislativo na fiscalização das atividades do Poder Executivo local [8].

Em nível estadual, há o exemplo de dispositivos da Constituição Estadual de São Paulo (artigo 188, inciso II, e 191) que determinam a realização de participação social em determinadas matérias legislativas (como desenvolvimento urbano, meio ambiente e proteção ao patrimônio cultural), servindo de parâmetro para controle judicial de constitucionalidade [9].

Isso mostra que há espaço para inovação e experimentos em termos de participação social nas atividades do poder público e a Emenda Constitucional nº 111/2021 é mais um elemento dessa história.

Estudo recente sobre as 192 constituições vigentes no mundo aponta para uma correlação positiva (e não causalidade) entre a previsão constitucional de mecanismos de participação social direta no processo decisório estatal e o aumento dos índices de qualidade da democracia, especialmente em países não europeus [10].

Ele aponta para uma situação intuitiva, mas importante de ser ressaltada: embora a previsão constitucional seja importante e salutar, a transformação das democráticas vai muito além da sua previsão normativa.

Desse modo, anteveem-se dois cenários plausíveis em relação às novas disposições constitucionais.

O primeiro cenário é a manutenção do status quo participativo atual no estilo decorativo “árvore de Natal”. Haverá alguns municípios que realizarão consultas pontuais, em que as câmaras municipais definirão — frequentemente já muito perto do encerramento do prazo constitucionalmente fixado de 90 dias — temas que consideram importantes, sem participação dos munícipes.

Os cidadãos expressarão suas opiniões nas urnas, mas os debates ficarão restritos a poucos ambientes do município, sendo que os resultados da consulta popular expressarão a opinião de uma parcela limitada da população — aquela que efetivamente comparece às urnas — e relativamente pré-concebida dos eleitores que pouco se engajarão no debate.

O segundo cenário aponta para um impacto maior em termos de cultura democrática. Aqui deve ser registrado que os procedimentos de consulta popular têm um grande potencial deliberativo, no sentido de fomentar a ampliação do debate público e o engajamento da população em geral nas questões em jogo.

As consultas populares não são mecanismos de pesquisa de opinião; são procedimentos que permitem a mobilização social em torno de temas e questões relevantes para que o processo de tomada de decisão coletiva ganhe novas perspectivas e informações em colaboração de mecanismos diretos e representativos da democracia.

A fim de contribuir com possíveis iniciativas, deixam-se registradas algumas sugestões para que as câmara municipais possam efetivamente estimular a participação social nessas questões, assumindo o protagonismo como órgão representativo capaz de dialogar direta e amplamente com todos os segmentos sociais. São elas:

organizar rodadas de discussão previamente no município sobre temas a serem objeto da consulta para que eles espelhem efetivamente os assuntos de maior interesse da população;

definição com clareza da questão a ser colocada perante consulta popular para que os eleitores saibam se estão diante de um plebiscito ou referendo, se há medida legislativa ou administrativa concreta em consulta, evitando-se adjetivos ou outras construções linguísticas que possam confundir ou induzir o eleitor;

uma vez definidos os temas e questões a serem levadas à consulta popular, estimular a criação de grupos de debates locais, com palestras e visitas em instituições públicas e privadas de educação, lazer e assistência, dentre outras, que tenham potencial de multiplicar o engajamento no debate público;

deve haver o levantamento de informações com apoio da estrutura de assessoria da câmara municipal para que o debate sobre essas questões seja informado por dados confiáveis que permitam aos eleitores construírem suas preferências – e não apenas expressar nas urnas sua opinião pré-concebida sem maiores informações; e

a partir dos resultados das consultas populares, a retomada dos trabalhos legislativo, inclusive na próxima legislatura municipal a partir de 2025, deve novamente contar com ampla discussão para adoção de eventuais medidas legislativas, fiscalizatórias ou administrativas.

A título de conclusão, com a Emenda Constitucional nº 111/2021 há, portanto, uma grande oportunidade de se fortalecer a cultura política para o aumento da participação social na democracia brasileira, especialmente a partir das atividades das câmaras municipais.

Mais do que um mero mecanismo limitado de pesquisa de opinião, as consultas populares têm um grande potencial deliberativo que pode e deve ser explorado para o reforço dos laços políticos entre representantes e representados na democracia brasileira.

*agradeço ao professor Bruno Andrade pelos comentários e observações em relação ao tema.

[1] Para uma síntese desse debate, cf. BUT, J. J.; JONGKIND, D. K.; VOERMANS, W. J. M. Direct democracy in the constitution: good or bad for democracy?. The Theory and Practice of Legislation, v. 11, n. 1, p. 52-82, 2023.

[2] Cf. STF, ADI-MC 6.121, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 13/06/2019, p. 18.

[3] ABREU. Renata. Comissão especial destinada a proferir parecer à PEC 125/11 – veda eleições próximas a feriado proposta de emenda à constituição nº 125, de 2011. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2021 p. 10-11.  Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2044198.

[4] TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE). Eleições 2024: eleitores poderão ter que responder a consultas populares. TSE, 12 jan. 2024. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Janeiro/eleicoes-2024-eleitores-de-alguns-municipios-poderao-ter-que-responder-a-consultas-publicas-no-1o-turno.

[5] Cf. BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica e por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros Editores, v. 26, 2001.p. 108 e ss.

[6] Cf. CARVALHO, Volgane Oliveira. O caso da California Proposition 60 e o déficit na participação popular na democracia brasileira ou a escassez de plebiscitos e referendos no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, v. 19, n. 219, p. 57-77, 2019. Uma recente, mas pontual exceção, foi o plebiscito de 2018 “pela manutenção ou não do uso de tração animal nos passeios turísticos realizados pelas Charretes no Município de Petrópolis” (Resolução nº 1.044/2018 TRE-RJ).

[7] Nesse sentido e com ênfase na experiência recente de participação social no processo de elaboração e execução orçamentária do Estado de Minas Gerais, ver RIBEIRO FILHO, Rodrigo Wagner Santos; SOARES, Fabiana de Menezes; GANGANA, Danton Fillipe Grossi. Perspectivas institucionais para democracia participativa: participação popular no ciclo orçamentário e as emendas impositivas em Minas Gerais. Cadernos da Escola do Legislativo, v. 23, n. 39, p. 86-112, 2021.

[8] Veja-se, por exemplo, a análise detalhada de instrumentos recentes de participação social nos municípios, inclusive a criação do Conselho de Representantes do Município de Salto, Estado de São Paulo, em GAZZI, Fábio Pinheiro. O princípio da participação social no Legislativo Municipal e os instrumentos colocados à disposição da sociedade. Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-Graduação em Direito Legislativo do IDP, 2023.

[9] Cf. DINÓCZI, Tímea; PINHEIRO, Victor Marcel. The normative potential of the principle of public participation in Brazil: an example from the São Paulo Court of Justice”. IN: FERNANDES, Bernardo Gonçalves; CATTONI, Marcelo Andrade de Oliveira; GUEDES, Maurício Sullivan Balhe (eds.), A Constituição e o Passado. A Constituição e o Futuro. A Constituição e o que não Veio – Em homenagem aos 35 anos da Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: D’plácido, 2023. p. 545-561.

 
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* Victor Marcel Pinheiro

é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ex-visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha), advogado, consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Consultor da ABRACAM.